“Sou Advogado, e Agora?
Autora do livro “Sou Advogado, e Agora? Guia para a tua prática individual”, Margarida Bonito Carvalho é uma das vozes mais inspiradoras da nova geração de advogados portugueses. Com uma visão lúcida e corajosa sobre os desafios da profissão, a advogada traz à luz questões estruturais que ultrapassam a técnica jurídica — e tocam diretamente na forma como o Direito se exerce, se vive e se transforma.
Na sua obra, Margarida Bonito Carvalho oferece um verdadeiro manual de orientação para quem decide trilhar o exigente caminho da prática individual, partilhando experiências, estratégias e alertas que nascem da vivência real da advocacia. Mas mais do que um guia profissional, o livro reflete também uma reflexão profunda sobre o papel do advogado no século XXI — e, de forma muito especial, sobre o papel da mulher advogada num meio ainda dominado por paradigmas tradicionais.
“A progressão feminina não falha por falta de mérito ou competência técnica, mas porque continua a enfrentar um sistema patriarcal que resiste em reconhecer a verdadeira equidade de género”, afirma Margarida Bonito Carvalho, numa constatação que ressoa tanto na advocacia como em muitos outros setores. A sua voz junta-se, assim, a um movimento cada vez mais urgente de desconstrução das barreiras invisíveis que travam o avanço das mulheres em cargos de liderança e reconhecimento.
Entre o rigor jurídico e a sensibilidade social, Margarida Bonito Carvalho afirma-se como uma profissional que não teme questionar estruturas nem desafiar convenções. A sua trajetória — marcada por determinação, empatia e um profundo sentido ético — faz dela um exemplo de como a advocacia pode ser não apenas uma profissão, mas também uma plataforma de transformação e consciência coletiva.
Nesta entrevista, exploramos o seu percurso, as motivações por detrás da escrita de “Sou Advogado, e Agora? Guia para a tua prática individual”, e a sua visão sobre o futuro da advocacia portuguesa — um futuro que, nas suas palavras, deverá ser mais inclusivo, mais transparente e, acima de tudo, mais humano.
O que a motivou a escrever o livro “Sou Advogado, e Agora? Guia para a tua prática individual” e quais foram os maiores desafios que encontrou ao iniciar a sua própria prática?
Escrever um livro nunca foi um sonho meu. Tornou-se um objetivo quando, por ter muito material guionado do meu podcast Artigo Zero, pensei que tal pudesse dar um livro. O processo de escrita seguiu um caminho diferente, mas foi aí que nasceu a ideia da escrita do livro. A minha motivação vem do facto de eu mesma ter passado pela profissão… sem sucesso, mas com muita frustração. Na minha advocacia, as dificuldades prenderam-se, sobretudo, com uma prática generalista, com a dificuldade em arranjar clientes e, consequentemente, com uma muito baixa autoestima profissional.
Na sua experiência, quais são os erros mais comuns que os jovens advogados cometem no início de carreira, e como o livro ajuda a preveni-los?
Sinceramente custa-me responder a esta pergunta porque acho que os colegas apenas seguem o caminho institucionalmente traçado. Não acho que cometam erros. Acho é que são mal conduzidos. O livro é, apenas, a minha visão de como a advocacia deve e pode ser encarada. Não escondo um certo «não caiam onde eu caí» e, por isso, abordo temas que considero essenciais à gestão do escritório como um negócio e não apenas como uma prática técnica. Falo de mindset, de tempo, de conquista de clientes, de marca pessoal… áreas que são fortemente ignoradas, mas que, na verdade, fazem toda a diferença para não cair na desmotivação e na sobrecarga.
Como equilibra a exigência técnica da profissão com a necessidade de competências transversais, como gestão, comunicação e marketing jurídico?
A competência técnica está no ADN da profissão. Mas, ao mesmo tempo, é quase um “mínimo olímpico”: um pressuposto básico que se espera de qualquer advogado no exercício da sua atividade. Todavia, se a técnica é irrefutável não é, por si só, suficiente para garantir a sustentabilidade e o crescimento de um escritório. Para além de “trabalhar no negócio” (in the business), isto é, desempenhar as tarefas estritamente jurídicas, como prazos, peças processuais, diligências ou consultas; é igualmente necessário “trabalhar o negócio” (on the business), dedicar tempo a áreas estratégicas como planeamento, gestão, comunicação e marketing jurídico. O desafio está no facto da formação e a prática da profissão estarem quase exclusivamente orientadas para o primeiro eixo (in the business), e deixar o segundo (on the business) à sorte e ao acaso. É precisamente aqui que se joga o verdadeiro equilíbrio: não na dicotomia entre técnica e gestão, mas na capacidade de organizar, planear e reservar espaço na agenda para lidar com ambos os domínios de forma integrada. Um aparte para confessar que eu mesma, quando exerci, também caí na esparrela de me concentrar, apenas, no “trabalho de advogada”. Talvez por isso me pareça hoje tão evidente que o verdadeiro salto qualitativo só ocorre quando se assume, com igual seriedade, a dimensão estratégica do exercício da advocacia.
Historicamente, a advocacia foi uma profissão dominada por homens. Quais avanços considera mais significativos na presença da mulher na advocacia em Portugal nas últimas décadas?
Diria que o avanço mais significativo foi a normalização da presença da mulher na profissão. Hoje já não surpreende ver mulheres a entrar em massa nos cursos de Direito, a estagiar… em profissões jurídicas. Mas importa sublinhar que quantidade não é sinónimo de igualdade plena. Apesar de já sermos maioria em muitas faculdades e escritórios, ainda encontramos desigualdades no acesso a cargos de liderança ou na conciliação entre vida profissional e pessoal. As últimas décadas trouxeram conquistas inegáveis: maior representatividade, uma consciência coletiva mais crítica sobre o tema… Mas o verdadeiro avanço será quando deixarmos de falar da “presença da mulher na advocacia” como algo extraordinário, e passarmos a falar simplesmente de advogados e advogadas em pé de igualdade.
Apesar do aumento da presença feminina, ainda existem barreiras invisíveis — como a dificuldade de ascender a cargos de liderança. Quais são, na sua opinião, os principais fatores que dificultam esta progressão?
Formalmente não há dificuldades: homens e mulheres acedem de igual maneira à profissão. Contudo, na prática, persistem obstáculos menos visíveis, mas reais. No contexto português, as mulheres já são maioria no mercado de trabalho, mas continuam a enfrentar uma dupla penalização: ganham menos e, ao chegar a casa, assumem ainda um “segundo turno” de trabalho não remunerado. O estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos, Trabalho Não Pago, é claro: 56% do tempo que as mulheres passam acordadas em casa é dedicado a tarefas domésticas e de cuidado, o que equivale a 3h48 por dia, nos dias úteis. Esta sobrecarga tem um impacto direto na disponibilidade emocional, intelectual e até física para disputar cargos de liderança. A este fator soma-se outro igualmente estrutural: a educação ainda marcada por padrões patriarcais, que molda mulheres com maior insegurança e elevada incidência de síndrome do impostor, ao passo que muitos homens, mesmo sem todas as qualificações, avançam com confiança para novos desafios. A progressão feminina não falha por falta de mérito ou competência técnica, mas porque continua a enfrentar um sistema patriarcal que resiste em reconhecer a verdadeira equidade de género.
A maternidade e a conciliação entre vida pessoal e profissional continuam a ser apontadas como desafios específicos para as mulheres na advocacia. Como vê esta questão?
Não tenho filhos, mas tenho opinião: as famílias continuam, em grande medida, centradas à volta da mulher. Esta forma de organizar a vida familiar é, em muito, consequência da educação patriarcal, que prejudica tanto mulheres como homens: nós, mulheres, acabamos muitas vezes por sentir que somos, de forma inata, mais capazes; e os homens, por sua vez, assumem um papel mais passivo (uns por conveniência, outros por hábito). Muita coisa tem mudado, mas continua a existir, sobretudo no contexto laboral, muito trabalho a fazer em termos de mentalidade e de partilha real de responsabilidades.
Nota diferenças no modo como as mulheres advogadas são percebidas por clientes e colegas em comparação com os homens?
Sinto que, apesar das diferenças estarem cada vez mais esbatidas, as mulheres advogadas ainda arrancam de uma linha de partida atrás da dos homens. Isto não é de estranhar: comportamentos e perceções levam tempo a mudar, afinal carregamos séculos de protagonismo masculino. Ainda hoje assistimos a situações caricatas, não tão esporádicas, em que mulheres advogadas são preteridas não por serem menos capazes, mas simplesmente por serem mulheres, a quem se cola o rótulo de menos assertivas, menos ambiciosas ou mais emocionais. Estes preconceitos, muitas vezes inconscientes, influenciam desde a atribuição de clientes e casos mais complexos até a oportunidades de liderança dentro dos escritórios. A boa notícia é que estas perceções, embora lentamente, estão a mudar. Cada vez mais, profissionalismo e resultados quebram estereótipos e abrem caminho a uma linha de partida mais justa.
A digitalização e a flexibilização das formas de trabalho podem ser uma oportunidade para tornar a advocacia mais inclusiva para as mulheres?
Sim, acredito que sim já que permitem quebrar alguns dos modelos tradicionais mais rígidos da profissão (como a presença constante no escritório ou os horários prolongados e inflexíveis) que, historicamente, penalizaram sobretudo as mulheres, sempre mais responsáveis por conciliar várias dimensões da vida pessoal e profissional. Não é novidade que a tecnologia abre espaço para novas formas de organização, maior autonomia e até para repensar o modelo de prestação de serviços jurídicos, colocando o talento e a qualidade do trabalho acima da disponibilidade física. Mas não sejamos ingénuos: a digitalização, por si só, não resolve desigualdades estruturais. Acompanhada de uma mudança cultural nas sociedades de advogados e na própria profissão, pode ser um motor poderoso de inclusão, permitindo que mais mulheres possam crescer integrando o trabalho na vida, sem terem de abdicar da sua vida pessoal.
Que conselhos daria a jovens advogadas que estão a iniciar carreira e que pretendem construir uma prática individual de sucesso?
Que não deixem ao acaso ou à sorte aspetos absolutamente planeáveis da sua advocacia. Escolham o vosso foco: não tentem ser “pau para toda a obra”; definam uma área de atuação e tornem-se referência nela. Adotem uma abordagem holística: gerir uma prática individual exige planeamento e execução (desde processos internos até marketing e comunicação). Sem clientes, não há advocacia: conquistar, fidelizar e gerir clientes é tão essencial quanto dominar a técnica jurídica. O segredo? Planeamento, foco e ação intencional. Não é magia, é estratégia.