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“A Psicologia Infantil em Portugal está num ponto de Viragem”

Psicóloga Clínica e da Saúde, Marisa Marques é a figura de capa desta edição da Business Voice e traz-nos uma visão esclarecida, atual e profundamente humana sobre a Saúde Mental — com especial foco nas crianças. Numa sociedade cada vez mais consciente da importância do bem-estar psicológico, embora ainda haja um caminho a percorrer, a nossa interlocutora destaca que o estigma associado à ida ao psicólogo é, felizmente, uma ideia quase ultrapassada, pois inúmeras vezes ainda se mantém camuflada. Nesta conversa, falou-nos da necessidade de olharmos com mais atenção para os sinais que surgem desde cedo, da importância de uma intervenção precoce, e de como ferramentas inovadoras, como o Neurofeedback, podem ser recursos terapêuticos transformadores no acompanhamento clínico. Uma entrevista imperdível que alia ciência, empatia e visão.

Psicóloga de enorme referência, a Marisa Marques tem vindo a timbrar o seu trajeto através de um enorme compromisso com o bem-estar dos outros, assumindo uma dinâmica muito forte no apoio e cuidado ao próximo. No sentido de contextualizar os nossos leitores, como é que a Psicologia surgiu na sua vida e quando é que decidiu que esta seria a sua forma de “dar” aos outros?
Desde sempre que senti uma ligação muito forte à área da saúde. A adrenalina de cuidar, de perceber o funcionamento do corpo humano — sobretudo do cérebro — fascinava-me. Durante o secundário, especialmente no 12.º ano, foi em Biologia que esse encanto ganhou ainda mais forma. Foi aí que percebi: o meu futuro teria de passar pela saúde. O meu sonho era claro — queria seguir Pediatria ou Neurologia/ Neurocirurgiã (apenas tinha de ter neurociência e desenvolvimento neuronal). Era com isso que sonhava acordada. O cérebro e o desenvolvimento exerciam (e ainda exercem) sobre mim um verdadeiro encantamento.
Foi em 2009 que ingressei no Mestrado Integrado em Psicologia na Universidade do Minho. Confesso que nos dois primeiros anos me senti um pouco perdida. A ligação entre o curso e aquilo que realmente me apaixonava parecia inexistente. Mas a vida, com a sua sabedoria silenciosa, encarregou-se de me mostrar que havia um caminho.
Foi através de conversas com colegas, partilhas honestas sobre o que me movia e o que me faltava, que surgiu a oportunidade que mudou tudo: integrar um grupo de investigação em Neurociências, mais especificamente em Neuromodulação. Fui orientada por duas pessoas que marcaram (e continuam a marcar) profundamente o meu percurso — a Dra. Sandra Carvalho e o Dr. Jorge Leite. Com eles, entrei num universo ainda mais deslumbrante do que alguma vez imaginei. Descobri, de forma prática e científica, que o cérebro é a raiz de tudo aquilo que somos, sentimos e expressamos.
A minha tese de mestrado nasceu nesse contexto e culminou na publicação de um artigo numa das revistas científicas mais reconhecidas da área: Brain Stimulation, em 2014. Foi um marco pessoal e profissional. Mas foi em 2013 que tive o meu primeiro contacto direto com o mundo real da Psicologia Clínica, ao integrar a Unidade de Neonatologia do Hospital de São João. Foi, sem dúvida, uma das maiores escolas da minha vida. Ali, entre incubadoras e corações pequeninos a lutar por cada batida, encontrei aquilo que tanto procurava: a ponte perfeita entre a Pediatria e as Neurociências. Senti-me, pela primeira vez, plenamente realizada — mulher, menina, profissional, tudo ao mesmo tempo.
Claro que o caminho não foi sempre fácil. Houve desafios, dúvidas, portas que se fecharam e outras que custaram a abrir. Mas cada passo foi dado com uma convicção imensa. E cada conquista foi vivida com a certeza de que estava — finalmente — a seguir o meu verdadeiro caminho.

O que despertou em si esta paixão por trabalhar com crianças? Que significado tem, para si, poder acompanhar o desenvolvimento emocional e cognitivo dos mais novos?
A paixão por trabalhar com crianças não surgiu de forma repentina — foi crescendo dentro de mim, com ternura e tempo, como tudo o que é genuíno. Sempre me tocou a forma pura, honesta e instintiva como as crianças sentem o mundo. Há uma verdade nelas que nos desarma, que nos obriga a ser inteiros, autênticos. Talvez por isso, desde muito cedo, me senti chamada a estar presente nesse início de vida, onde tudo ainda está em construção — emoções, pensamentos, sonhos, medos, afetos. Poder estar ao lado de uma criança quando ela começa a compreender melhor o que sente, quando encontra palavras para os seus medos, quando ganha coragem para confiar... é mágico. Ver um menino ou menina florescer, encontrar segurança onde antes havia apenas incerteza, é das maiores dádivas que esta profissão me deu.
Mas não é só com a criança que trabalho. É com a família inteira — com os pais que chegam cheios de dúvidas, com o irmão que sente ciúmes, com a mãe que se culpa, com o pai que não sabe como ajudar. E é nesse espaço, entre a dor e o amor, que tento ser ponte, ser colo, ser guia.
Acredito que cada criança tem um brilho próprio — mesmo quando está escondido atrás de um comportamento difícil ou de um silêncio mais prolongado. O meu papel é ajudar a acender essa luz, a devolver-lhes o direito de serem escutadas, compreendidas e amadas exatamente como são.
E é por isso que digo, com toda a certeza do meu coração:
Não há nada de mais bonito nesta vida do que viver com a dose certa de paixão.
E a minha mora aqui — entre a ciência e o afeto, entre o rigor e a empatia, entre o cérebro e o coração de cada criança.

Vivemos, hoje, um tempo de maior consciencialização sobre a saúde mental. No entanto, na sua opinião e experiência, por que razão continua a haver tão pouco investimento na saúde mental infantil, nomeadamente ao nível das estruturas públicas e do apoio às famílias?
É verdade que temos assistido a uma maior abertura e sensibilização em torno da saúde mental — mas, infelizmente, esse movimento ainda não chegou com a força necessária às crianças e às famílias. O investimento público na saúde mental infantil continua a ser profundamente insuficiente. Os profissionais que trabalham nesta área sentem-no todos os dias: nos serviços sobrecarregados, nas longas listas de espera, nas famílias que desesperam por uma resposta e, acima de tudo, nas crianças que não podem esperar.
A saúde mental infantil ainda é pouco reconhecida na sua importância estrutural. Esquecemo-nos de que uma criança que não é acompanhada hoje será um adulto com mais dificuldades amanhã. E a prevenção, nesta área, começa precisamente no desenvolvimento — emocional, social, cognitivo. Começa no colo certo, na escuta certa, no apoio precoce.
O mesmo se aplica à área do neurodesenvolvimento e da Neurodivergência. Crianças com diagnósticos como Perturbação do Espectro do Autismo, PHDA, Perturbações da Linguagem, do Desenvolvimento Motor ou Intelectual, continuam a ser vistas muitas vezes como “casos”, e não como crianças com direitos, potencialidades e caminhos próprios. Há ainda uma grande falta de formação, de recursos humanos, de políticas públicas verdadeiramente inclusivas. As famílias sentem-se perdidas, sobrecarregadas e, tantas vezes, sozinhas no processo.
A neurodivergência precisa de ser entendida com olhos novos — não como um problema a resolver, mas como uma diferença a acompanhar, a acolher e a apoiar. E para isso, é preciso apostar em respostas precoces, integradas e humanas, com equipas multidisciplinares acessíveis a todas as famílias, não apenas às que podem pagar.
Acredito que estamos num ponto de viragem — mas é preciso agir com urgência. Investir na saúde mental e no neurodesenvolvimento das nossas crianças é investir no futuro de todos nós. E só quando a sociedade assumir este compromisso como uma prioridade real, é que poderemos, finalmente, dizer que todas as crianças têm o direito de crescer acompanhadas, compreendidas e felizes — exatamente como são.

No contexto da sua prática clínica, que principais sinais e problemáticas identifica como mais recorrentes entre as crianças que acompanha?
Na minha prática clínica, acompanho essencialmente crianças neurodivergentes — crianças que pensam, sentem e se expressam de forma única, fora daquilo que é considerado o “neurotípico”. 
Os sinais que mais frequentemente levam as famílias a procurar apoio são variados: dificuldades na comunicação verbal e não verbal, comportamentos desafiantes, desregulação emocional, dificuldades em interações sociais, agitação motora, problemas de atenção e concentração, ou mesmo atrasos globais no desenvolvimento.
Por vezes, o que parece ser “birra” ou “má educação” é, na verdade, um grito por ajuda — uma forma de expressão de uma criança que está a tentar adaptar-se a um mundo que nem sempre a compreende. Muitas destas crianças vivem num esforço constante para se autorregular, o que as deixa exaustas emocionalmente, levando a episódios de frustração ou isolamento. Além disso, é muito frequente encontrar sinais de ansiedade, baixa autoestima e insegurança — não pela sua forma de ser, mas pela forma como o mundo as faz sentir “diferentes” ou “erradas”. 
A estas problemáticas soma-se, muitas vezes, o sofrimento das famílias: pais que lutam diariamente para compreender, adaptar e apoiar, mas que sentem falta de orientação, de respostas públicas, de tempo e de rede.
Por isso, mais do que identificar sintomas e avaliar quadros clínicos, o meu foco está em compreender cada criança na sua totalidade — respeitando o seu ritmo, os seus desafios, mas também reconhecendo os seus talentos, interesses e conquistas. Porque cada uma delas tem um potencial imenso que merece ser visto, estimulado e valorizado.

No dia 1 de junho celebrou-se o Dia Mundial da Criança. Que análise perpetua, enquanto psicóloga, sobre a realidade das crianças atualmente, sobretudo no que diz respeito às suas necessidades emocionais e à importância do acompanhamento psicológico desde tenra idade?
O Dia Mundial da Criança deveria ser, mais do que uma comemoração, mas sim um momento de reflexão profunda sobre o modo como cuidamos e olhamos para a infância. Porque ser criança hoje, apesar de todo o avanço tecnológico, de mais informação, de mais sensibilização, ..., continua a ser um enorme desafio emocional.
Vejo crianças cada vez mais pressionadas, mais aceleradas, mais expostas a estímulos constantes — e, ao mesmo tempo, mais sós. Sós no sentido de que lhes falta tempo para brincar livremente, para serem escutadas, para viverem o afeto com presença. A correria do dia-a-dia, as exigências escolares (e mesmo sociais), a falta de tempo com os pais... tem um impacto direto não só nas emoções, mas no próprio desenvolvimento dos mais pequenos.
Enquanto psicóloga, percebo claramente como é essencial olharmos para a criança não apenas quando há um “problema” visível, mas desde cedo, na prevenção, no apoio ao seu desenvolvimento. O acompanhamento desde tenra idade é uma forma de cuidarmos da base.
Por isso não só neste dia, mas todos os dias, o meu maior desejo é que cada criança possa crescer num ambiente onde sinta que tem valor, voz e espaço para ser exatamente quem é. 

Considera que a sociedade está, efetivamente, mais atenta às necessidades das crianças ou ainda há um longo caminho a percorrer em termos de empatia, escuta ativa e apoio psicológico real?
Acredito que, sim, há hoje uma maior consciência coletiva sobre a importância de cuidar bem da infância. Fala-se mais de saúde mental, de regulação emocional, de desenvolvimento infantil — e isso é, sem dúvida, um avanço importante. Mas entre o que se diz e o que se faz… ainda existe um longo caminho a percorrer.
Ainda estamos a aprender a escutar verdadeiramente as crianças. A escuta ativa não é apenas estar presente — é estar com o coração aberto, com disponibilidade emocional, sem julgamento e com empatia real. E isso, infelizmente, continua a faltar. Há pressa, há rotinas exigentes, há adultos exaustos. E no meio disso tudo, há crianças que continuam a não ser ouvidas nos seus silêncios, nas suas birras, nos seus comportamentos que são, muitas vezes, pedidos de ajuda.
Quanto ao apoio psicológico, o caminho é ainda mais longo. Há uma enorme lacuna entre a necessidade real e a resposta disponível — principalmente nos serviços públicos. O acesso é difícil, demorado e muitas famílias acabam por se sentir desamparadas. E no caso de crianças neurodivergentes, estas dificuldades duplicam — porque há falta de meios, de formação específica, de tempo e de sensibilidade.
Por isso, sim, estamos a evoluir — mas precisamos de mais ação e menos intenção e isso exige uma sociedade que abrace a infância com o respeito, o investimento e o compromisso que ela merece.

Sente que hoje o estigma de uma «ida ao psicólogo» está completamente ultrapassado? O que ainda falta para que esta «ida ao psicólogo» seja vista como algo normal? 
Já percorremos um bom caminho. Hoje em dia, é mais comum vermos pessoas a falar sobre saúde mental, sobre as suas emoções, sobre a importância de pedir ajuda. Já não se ouve com tanta frequência aquela frase “isso é coisa de malucos”, e felizmente começamos a perceber que cuidar da mente é tão essencial como cuidar do corpo.
Mas, na prática, o estigma ainda existe — muitas vezes de forma silenciosa, camuflada. Ainda há pais que têm medo de levar o filho a um psicólogo por receio do que a escola ou a família vão pensar. Ainda há quem procure apoio “às escondidas” ou quem espere que tudo se resolva sozinho, com o tempo, para não dar o “passo” de pedir ajuda.

Um dos recursos terapêuticos com que trabalha é o Neurofeedback. Pode explicar-nos em que consiste exatamente esta técnica?
Sim, o Neurofeedback, tal como outras técnicas de neuromodulação, é uma das ferramentas com que trabalho e, sem dúvida, das mais fascinantes. Trata-se de uma técnica de autorregulação cerebral que permite ao cérebro aprender a funcionar de forma mais equilibrada e eficiente. Explicando de forma simples: o Neurofeedback é como um “espelho” que mostra ao cérebro, em tempo real, como está a funcionar — e o ajuda a reorganizar-se.
Através de sensores colocados no couro cabeludo, captamos as ondas cerebrais da pessoa e essas informações são transformadas num feedback visual e auditivo — normalmente através de um jogo, um vídeo ou uma animação. Quando o cérebro emite uma atividade desejada (mais calma, mais focada, mais regulada, ...), o vídeo continua a correr ou o jogo avança. Quando a atividade cerebral se desregula, há uma interrupção subtil. O cérebro, de forma natural, aprende com esse processo, adaptando-se e melhorando o seu desempenho.
É uma técnica totalmente não invasiva, indolor e segura — e os resultados podem ser verdadeiramente impactantes. Trabalho com Neurofeedback, sobretudo, em crianças com dificuldades de atenção, hiperatividade, ansiedade, perturbações do sono, e também em contextos de neurodivergência, como PHDA ou Perturbação do Espectro do Autismo. Mas também tem benefícios em jovens e adultos.
O mais bonito neste processo é ver a criança ganhar autonomia emocional e cognitiva. Ver a ansiedade a diminuir, a atenção a melhorar, o sono a regular-se... e, acima de tudo, ver o sorriso de quem começa a perceber que consegue, sim, sentir-se melhor, mais calmo, mais focado — por si próprio. E isso, para mim, é uma conquista imensa.

De que forma é que o Neurofeedback permite o treino direto do funcionamento cerebral e como se traduz, na prática clínica, essa capacidade de "reeducar" o cérebro? 
O Neurofeedback permite o treino direto do cérebro porque trabalha a partir da sua capacidade natural de aprendizagem e autorregulação. O nosso cérebro é plástico — ou seja, é capaz de se adaptar, reorganizar e formar novas ligações com base na experiência. O Neurofeedback tira partido exatamente dessa plasticidade cerebral, oferecendo ao cérebro um feedback imediato do que está a fazer e reforçando os padrões de atividade que são mais desejáveis ou funcionais.
Na prática clínica, isto traduz-se em mudanças reais e visíveis. Crianças com PHDA passam a ter maior capacidade de atenção, melhor controlo da impulsividade e mais facilidade na autorregulação emocional. Em casos de ansiedade, vemos uma redução nos sintomas, maior tranquilidade interna e melhoria no sono. Em crianças neurodivergentes, como no espectro do autismo, o Neurofeedback pode ajudar a melhorar a flexibilidade cognitiva, o processamento sensorial e a regulação emocional.
É um processo gradual, feito com consistência e respeito pelo ritmo de cada cérebro. Mas os resultados são transformadores. E o mais importante é que essa “reeducação” acontece de forma natural, sem recurso a medicação, devolvendo à criança (e à família) a confiança de que é possível sentir-se e funcionar melhor — com segurança, com autonomia e com dignidade.

Que tipo de condições ou perturbações têm demonstrado maior resposta a esta abordagem? Pode partilhar alguns exemplos concretos como Ansiedade, Perturbação de Hiperatividade com Défice de Atenção (PHDA), Autismo, entre outros?
O Neurofeedback tem vindo a demonstrar resultados muito promissores em várias condições do neurodesenvolvimento e da saúde mental, sobretudo em crianças e jovens. As respostas mais significativas que tenho observado na prática clínica dizem respeito a:
•    Perturbação de Hiperatividade com Défice de Atenção (PHDA): É, provavelmente, uma das áreas onde o Neurofeedback tem mais evidência científica e clínica. As crianças com PHDA beneficiam muito deste treino, pois ajuda a melhorar os níveis de atenção, a reduzir a impulsividade e a promover uma maior autorregulação emocional. Muitos pais relatam melhorias no comportamento em casa e na escola, e em muitos casos é possível reduzir a necessidade de medicação ou complementar o seu efeito de forma mais sustentável.
•    Perturbação do Espectro do Autismo (PEA): Embora cada criança no espectro seja única, o Neurofeedback pode ajudar na regulação emocional, na redução da rigidez comportamental, na melhoria da atenção e na adaptação ao ambiente. É uma ferramenta que, usada de forma personalizada, pode promover ganhos em áreas como a tolerância à frustração, o sono e o contacto social.
•    Perturbações do Sono: Muitas crianças e adolescentes com dificuldades em adormecer ou manter o sono, ou com sonos muito agitados, beneficiam de treinos com protocolos específicos que promovem a regulação dos ritmos cerebrais associados ao repouso.
•    Perturbações da Aprendizagem e Dificuldades de Processamento Sensorial: O Neurofeedback ajuda a melhorar a integração sensorial e a capacidade de manter o foco em tarefas cognitivas, o que é essencial para a aprendizagem e o desempenho escolar.
Cada sessão é pensada de forma personalizada, com base em avaliações clínicas, cognitivas e, sempre que possível, com suporte de mapeamento cerebral (QEEG). O que torna esta abordagem tão especial é que não trabalhamos apenas “sobre” o comportamento — trabalhamos com o próprio cérebro, respeitando o ritmo de cada criança e criando um espaço onde ela pode aprender a confiar no seu próprio corpo e mente.
É profundamente gratificante acompanhar este processo — ver uma criança que não conseguia parar um minuto a conseguir manter a atenção numa história, ou outra que começa a olhar para si com mais orgulho e segurança. Essas pequenas grandes vitórias fazem toda a diferença — e são o verdadeiro motor daquilo que faço.

Que vantagens observa, de forma geral, na aplicação do Neurofeedback em crianças? Que tipo de benefícios são mais visíveis, tanto a curto como a longo prazo?
O Neurofeedback apresenta vantagens muito significativas quando aplicado em crianças — especialmente por ser uma abordagem não invasiva, segura, personalizada e que respeita o ritmo natural de desenvolvimento cerebral.
A curto prazo, os primeiros benefícios que costumamos observar prendem-se com a regulação emocional e comportamental. Crianças que chegavam agitadas, impulsivas ou ansiosas começam a mostrar mais tranquilidade, mais capacidade de concentração e maior tolerância à frustração. É como se o cérebro aprendesse a sair do "modo alerta constante" e passasse a funcionar de forma mais equilibrada. Muitos pais referem logo nas primeiras sessões melhorias no sono, no comportamento em casa e na capacidade de escuta e foco.
A médio e longo prazo, os efeitos tornam-se mais consistentes. O que mais me impressiona é o ganho de autonomia e de autoestima. Quando a criança percebe que é ela própria que está a mudar — sem esforço forçado, sem castigos, sem remédios — sente-se capaz, sente-se valorizada. E essa segurança emocional reflete-se em tudo: nas relações com os outros, na escola, na forma como reage aos desafios do dia a dia.
Outra grande vantagem é a possibilidade de prevenção: o Neurofeedback não serve apenas para "resolver problemas", mas também para promover o bem-estar e o equilíbrio global da criança. Quando treinamos o cérebro a funcionar de forma mais eficaz, estamos a criar condições para um desenvolvimento mais saudável em todas as áreas.
Em resumo, os benefícios mais visíveis vão desde a melhoria da atenção, da autorregulação e do sono, até ao aumento da autoestima, da confiança e da capacidade de lidar com o mundo de forma mais adaptada. E o mais bonito é que tudo isto acontece com respeito, com leveza e com a profunda convicção de que o cérebro de uma criança tem um potencial imenso — basta que alguém acredite nele e lhe dê as ferramentas certas para florescer.

O seu trabalho foca-se, na área do Neurodesenvolvimento e da Pediatria. Quais considera serem os maiores desafios nesta intersecção entre saúde mental e desenvolvimento infantil?
Trabalhar na intersecção entre o neurodesenvolvimento e a saúde mental infantil como tinha dito anteriormente, para mim, um verdadeiro privilégio — mas também um grande desafio. É uma área que exige sensibilidade, conhecimento técnico e, acima de tudo, humanidade.
Um dos maiores desafios que enfrentamos é o atraso na identificação e no acompanhamento precoce. Ainda hoje, muitas crianças com sinais de alerta são vistas como “tímidas”, “mal-comportadas”, “birrentas” ou “preguiçosas”, e os sinais mais subtis de dificuldades no desenvolvimento ou na saúde emocional são facilmente desvalorizados. Quando esses sinais são ignorados, o tempo passa — e quanto mais tempo passa, maior é o impacto a nível emocional, social e cognitivo.
Outro desafio constante é o acesso desigual aos recursos especializados. Enquanto algumas famílias conseguem ter acompanhamento multidisciplinar ajustado às necessidades da criança, outras continuam à espera durante meses — ou anos — por uma avaliação, uma consulta ou uma resposta em meio escolar. E, infelizmente, a realidade é que muitas crianças ficam para trás porque o sistema não consegue dar resposta a tempo e as famílias não têm capacidade financeira para recorrer ao sistema privado.
Também é desafiante lidar com o sofrimento silencioso das famílias. Os pais chegam muitas vezes cansados, culpabilizados, sem saber por onde começar. Querem fazer o melhor pelos filhos, mas sentem-se desorientados. O meu papel, enquanto psicóloga, não é apenas intervir com a criança — é acolher toda a dinâmica familiar, dar ferramentas, oferecer um espaço de validação e construir soluções em conjunto.
Por último, e bastante marcante, ainda falta um olhar mais integrado sobre o desenvolvimento infantil — um olhar que una a ciência da saúde mental com a prática pediátrica, com a educação, com a família. O desenvolvimento não acontece por “partes”, e por isso o acompanhamento também não deve ser fragmentado. As emoções, o comportamento, o corpo e o cérebro estão profundamente interligados — e é aí que reside a beleza e a complexidade do trabalho que faço.

Como vê o futuro da psicologia infantil em Portugal? Que transformações acredita serem urgentes para garantir um acompanhamento mais justo, eficaz e acessível a todas as crianças?
Acredito (e muito) que a psicologia infantil em Portugal está num ponto de viragem. Há cada vez mais profissionais qualificados, mais formação específica, mais abertura da sociedade para falar sobre emoções, saúde mental e desenvolvimento infantil. Mas essa evolução precisa de ser acompanhada por decisões estruturais — porque cuidar das crianças não pode depender da sorte, do código postal ou da capacidade financeira da família.
O futuro da psicologia infantil em Portugal será promissor se conseguirmos garantir acesso universal, precoce e continuado ao acompanhamento e intervenção precoce. Isso começa por integrar psicólogos nos centros de saúde e hospitais pediátricos, com tempo e recursos para acompanhar as famílias desde os primeiros sinais.
É também urgente investir numa resposta pública integrada, que reconheça o valor do trabalho multidisciplinar e que não obrigue as famílias a procurarem apoio em fragmentos — um psicólogo aqui, um terapeuta ali, um relatório acolá. As crianças precisam de continuidade, de equipas que comuniquem entre si, de planos de intervenção pensados a médio e longo prazo.
Vejo o futuro da psicologia infantil como uma construção conjunta, feita entre profissionais, famílias, escolas e instituições. Uma construção que exige compromisso, coragem e visão. 

Que mensagem gostaria de deixar às famílias, educadores e profissionais que lidam diariamente com crianças, especialmente no contexto da celebração do Dia Mundial da Criança?
Neste Dia Mundial da Criança, deixo uma mensagem sentida, não só como psicóloga, mas também como mulher e como criança que fui.
Às famílias, peço que: sejam o primeiro porto seguro das vossas crianças. Nem sempre terão todas as respostas, nem sempre conseguirão acertar à primeira — e está tudo bem. O mais importante é que estejam presentes, atentos, disponíveis para amar mesmo nos dias mais difíceis. O amor imperfeito, mas verdadeiro, é a base mais sólida que as crianças ( e mesmo nos adultos) podem ter.
Aos educadores e professores: sei que muitas vezes trabalham para além do que conseguem, que acolhem dores que não são só vossas. Mas sei também que uma palavra vossa, uma escuta atenta, um olhar empático… pode mudar o rumo de uma da vida de uma criança e de uma família.
E aos colegas profissionais de saúde, de educação, de intervenção — que tantas vezes nos movemos entre diagnósticos, prazos e desafios — deixo o reforço da importância do nosso papel. Cuidar de uma criança é muito mais do que aplicar técnicas: é escutar com o coração, é acreditar mesmo quando o mundo duvida, é estar presente com consistência e verdade.
Por isso hoje e todos os dias, o meu maior desejo é que continuemos, todos, a lembrar-nos do essencial: as crianças não precisam de perfeição nem de quantidade, precisam sim de presença e qualidade. Precisam de adultos presentes que as validem, que as respeitem e que as ajudem a descobrir quem são — ao seu ritmo, com os seus tempos, com as suas cores únicas.
Cuidar de uma criança não é apenas um ato de amor. É também um ato de esperança, deque vale a pena continuar — todos os dias “sem baixar os braços”.

E que apelo deixaria às entidades públicas e decisores políticos relativamente à urgência de investir na saúde mental desde os primeiros anos de vida?
É muito simples, mas muito urgente: não podemos continuar a adiar o cuidado com a saúde mental, muito menos na infância. Cuidar da mente de uma criança é cuidar do seu desenvolvimento global — da forma como ela aprende, se relaciona, constrói a sua identidade e o seu futuro.
Infelizmente, em Portugal, o investimento nesta área continua a ser residual. Faltam recursos humanos. Faltam respostas céleres e eficazes para as crianças e as suas famílias que vivem diariamente com medo, ansiedade e desorientação. 
A ciência já não deixa dúvidas: os primeiros anos de vida são determinantes. Por isso, peço muito que todos nós, enquanto pais, profissionais, sociedade, que a saúde mental infantil deixe de ser vista como um “extra” ou um “luxo” e passe a ser reconhecida como um pilar essencial da política pública em saúde, educação e desenvolvimento social. Que se criem redes de apoio acessíveis, que se valorizem os profissionais que estão no terreno, e que se ouçam as famílias — porque elas são, muitas vezes, as primeiras a identificar o que não está bem.
O futuro constrói-se hoje. E começa na forma como tratamos e cuidamos das nossas crianças.


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