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Mudar a Cultura Financeira em Portugal

Num país onde grande parte das famílias e empresas ainda vive “ao mês”, falar de literacia financeira deixa de ser apenas um tema técnico e torna-se uma necessidade cultural. Maria João de Figueiredo, CEO da CIPHRA – Contabilidade, Gestão e Recursos Humanos, defende uma mudança profunda na forma como encaramos o dinheiro: “Gostaria de ver uma mudança cultural: onde as famílias e as empresas deixassem de viver ‘ao mês’ e passassem a planear ciclos, que a poupança fosse vista como prioridade e não como luxo”. Nesta entrevista, exploramos os desafios da literacia financeira em Portugal e o que é preciso para transformar hábitos, criar consciência económica e preparar cidadãos e empresas para um futuro mais sustentável financeiramente.

Como avalia o nível de literacia financeira em Portugal atualmente? Acha que os portugueses estão mais conscientes das suas finanças pessoais e empresariais, ou ainda existe um défice significativo de conhecimento financeiro?
Na minha análise, Portugal tem registado progressos no que toca aquilo que é literacia financeira tanto nas pequenas e médias empresas, como no seio das famílias, mas ainda assim continuamos a assistir a um défice significativo de conhecimento sobre o tema o que limita a eficácia desses mesmos avanços.
Por um lado, encontram-se cada vez mais iniciativas públicas, académicas e privadas que promovem a educação financeira, bem como uma maior visibilidade mediática das questões relacionadas com poupança, crédito, risco e investimento. Por outro lado, os indicadores mais recentes sublinham que muitos dos conceitos nucleares como juros compostos, inflação, diversificação de risco, e análise de custos e receitas continuam pouco compreendidos ou aplicados de forma regular.
Num contexto empresarial, especialmente no universo das PME, a literacia financeira é um fator crítico de sustentabilidade. Acredito que, hoje em dia, estamos mais conscientes das finanças pessoais e empresariais do que há uma década, mas o salto qualitativo ainda está por dar: ter consciência não é sinónimo de saber gerir, decidir ou antecipar.
De modo muito claro: o acesso à informação já não é o principal obstáculo, o verdadeiro desafio está em traduzir essa informação num comportamento financeiro estruturado, em tomadas de decisão ponderadas e em hábitos a longo prazo. Sem isso, a literacia permanece superficial. Há progresso, sem dúvida, mas transformar informação em competência continua a ser o desafio da literacia financeira em Portugal.

Na sua perspetiva, qual é o maior erro financeiro que as famílias e as pequenas empresas portuguesas cometem com mais frequência? É uma questão de falta de planeamento, de disciplina, ou de desconhecimento das ferramentas financeiras disponíveis?
Na minha ótica, o erro financeiro mais frequente no contexto português para famílias e PME’s resulta de uma combinação de fatores mas com um claro denominador comum: o desalinhamento entre intenção e execução.
Em primeiro lugar, diria a falta de planeamento: muitas famílias e empresas operam “ao dia” ou em função do que acontece, em vez de definirem objetivos financeiros claros (curto, médio, longo prazo) e estruturarem os meios para os atingir.
Em segundo lugar, disciplina: mesmo quando existe algum plano, são raras as vezes em que se mantém a consistência necessária tanto no cumprimento de orçamentos, como no controlo de custos, na revisão periódica da tesouraria e até mesmo na poupança automatizada.
Em terceiro lugar, o desconhecimento ou a subutilização das ferramentas financeiras: tecnologias de gestão, dashboards, simuladores investimento existem, mas a adoção dos mesmos ainda é efetuada com timidez, particularmente no universo das PME, onde a perceção é muitas vezes a de que “isto não é para mim”.
Se tivesse de apontar apenas um erro maior, diria que ignorar a liquidez e o fluxo de caixa como prioridade estratégica seja a maior lacuna. Frequentemente, as famílias e as empresas olham para o resultado, mas não monitorizam com rigor o “dinheiro a entrar”, “dinheiro a sair” e “dinheiro em reserva”. É aí que se marcam diferenças, porque sem um bom fluxo de tesouraria, qualquer adversidade ou oportunidade é transformada em risco. E neste caso, o problema não é só a falta de conhecimento, mas o facto desse conhecimento não ser sistematizado através de práticas regulares e da disciplina para as operacionalizar.

O papel das escolas e das empresas é muitas vezes apontado como crucial na educação financeira. Acha que existe uma verdadeira integração da literacia financeira nos programas escolares e na formação profissional, ou ainda é um tema tratado de forma superficial?
Considero que a integração da literacia financeira no sistema educativo e na formação profissional está em curso, mas ainda de forma incipiente e fragmentada.
No meio escolar, surgem alguns módulos e iniciativas pontuais que introduzem temas como gestão pessoal, crédito e risco, mas a literacia financeira ainda não é parte integrante dos currículos como deveria ser, desde o 1.º ciclo até ao ensino pós-secundário. Isso pode ser educado em comportamentos e decisões desde cedo, tendo sempre de ser adaptado à linguagem das diferentes faixas etárias. A verdade é que, no caso das escolas, a literacia financeira muitas vezes aparece como tema transversal ou extracurricular, em vez de uma componente estrutural.
No âmbito da formação profissional e do mundo empresarial, observa-se maior abertura: empresas que promovem workshops internos, consultorias que prestam serviços de literacia aos colaboradores, e plataformas que disponibilizam recursos de aprendizagem. No entanto, também se verifica que nesses postos nem sempre existe uma estratégia de longevidade. Acabam por se optar por ações pontuais, que carecem de métricas de impacto ou não sendo integradas em planos de desenvolvimento contínuo.

Do ponto de vista da CIPHRA, que desafios financeiros enfrentam hoje as PME portuguesas? E como pode uma boa gestão financeira e contabilística fazer a diferença na sustentabilidade e no crescimento dessas empresas?
Enquanto CEO da Ciphra, acompanho diariamente PME’s de diferentes sectores e vejo de perto os desafios que enfrentam: dificuldades de liquidez e acesso a financiamento, margens reduzidas, estruturas de custos pouco flexíveis e uma cultura financeira ainda limitada. A falta de informação fiável e de controlo interno leva, muitas vezes, a decisões reativas em vez de estratégicas. Uma boa gestão financeira faz toda a diferença. Mapas de tesouraria atualizados, contabilidade analítica por produto ou cliente, e orçamentos alinhados com o plano estratégico dão às empresas capacidade para antecipar problemas, corrigir erros e aproveitar oportunidades. O bom funcionamento financeiro aumenta a transparência e a confiança, enquanto que a formação das equipas cria uma cultura de responsabilidade partilhada.
Na CIPHRA, queremos que as PME’s deixem de ver a contabilidade como uma obrigação fiscal e a encarem como uma ferramenta estratégica de crescimento. Só assim é que a liberdade financeira se transforma em eficiência, resiliência e verdadeira vantagem competitiva.

A digitalização e as novas tecnologias trouxeram um acesso mais fácil à informação e a ferramentas de gestão financeira. No entanto, acha que essa digitalização está realmente a traduzir-se em maior literacia e autonomia financeira?
A digitalização democratizou o acesso à informação e às ferramentas de gestão, mas nem sempre é traduzido em maior literacia ou autonomia financeira. Apostar na tecnologia não é o mesmo que saber usá-la estrategicamente. Muitas empresas adotam softwares sem formação adequada ou cultura de análise, limitando-se a recolher dados sem os transformar em decisões. As que conjugam tecnologia com literacia financeira real ganham agilidade, antecipam riscos e fortalecem-se com resiliência. A tecnologia é essencial, mas só cria valor quando é acompanhada por conhecimento, disciplina e capacidade de interpretação.

A literacia financeira está também ligada à capacidade de tomar decisões responsáveis — por exemplo, sobre crédito, investimento ou poupança. Como avalia o comportamento dos portugueses neste equilíbrio entre consumo imediato e planeamento a longo prazo?
Os portugueses estão mais conscientes da importância de poupar e planear, mas o consumo imediato ainda prevalece sobre a visão a longo prazo. Muitas decisões financeiras continuam a ser tomadas de forma reativa, sem hierarquizar prioridades. O equilíbrio exige disciplina: exige definir metas de poupança, automatizar reservas e rever planos periodicamente. Mais uma vez, a verdadeira literacia só se manifesta quando o planeamento deixa de ser um ideal e passa a ser um hábito, garantindo estabilidade e liberdade para investir de forma consciente.

Enquanto profissional que lida diariamente com gestão e contabilidade, o que considera essencial para que uma pessoa — ou uma empresa — se torne financeiramente “alfabetizada”?
Ser financeiramente alfabetizado não é só dominar conceitos básicos, é transformar conhecimento em rotina e agir com base em dados. Implica compreender indicadores como a liquidez, a rentabilidade e o custo de capital, mas também ter processos regulares de orçamento, controlo e decisão. Nas empresas, acrescenta-se a isto a necessidade de ferramentas fiáveis e de uma cultura que envolva todos os colaboradores. A literacia financeira é, no fundo, uma forma de liderança quem entende os números, entende o negócio e decide melhor.

Por fim, olhando para o futuro, que mudanças gostaria de ver na mentalidade financeira dos portugueses?
Gostaria de ver uma mudança cultural: onde as famílias e as empresas deixassem de viver “ao mês” e passassem a planear ciclos, que a poupança fosse vista como prioridade e não como luxo e que o crédito se use como ferramenta de crescimento e não como escape. É essencial promover nos portugueses uma mentalidade de responsabilidade informada, em que cada decisão financeira é pensada com visão e propósito. Essa mudança começa na educação e prolonga-se até prática diária de quem gere, investe e poupa com consciência.

Acredita que estamos a caminhar para uma sociedade mais consciente, responsável e preparada financeiramente?
Sim, estamos a evoluir, mas ainda de forma ímpar. Existem mais ferramentas, mais debate público e maior sensibilidade para a importância da literacia financeira, mas falta consistência e continuidade. A preparação financeira deve ser encarada como uma competência essencial, tanto quanto a digital ou a linguística. Como referi noutras questões, a liberdade financeira não é um privilégio é uma necessidade estratégica para a estabilidade individual e coletiva. Só com conhecimento, planeamento e responsabilidade poderemos consolidar uma sociedade verdadeiramente prepara

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